sábado, 31 de maio de 2008

Camille - voz e muito talento


Uma extraordinária revelação.
Esqueçam Björk e o álbum "Medulla". Camille, nome singelo de uma cantora francesa que faz da voz o seu instrumento, ao qual junta beatbox, percussão corporal, melodias pop e muita criatividade à mistura, vai mais longe que a cantora islandesa. Admito que a não conhecia. Li hoje um inflamado artigo de página inteira no Expresso e tive de procurar toda a informação disponível. O entusiasmo compreende-se. Camille não se restringe às regras da canção pop, é uma inventora de soluções sonoras (tem um tema, "Cats and Dogs", que é um prodígio musical com vozes desses animais feitas com recursos vocais humanos), faz com a voz um trabalho similar ao do francês Bernard Massuir ou do americano Bobby McFerrin (já se encontra mais distante do experimentalismo de uma Meredith Monk). O álbum "Music Hole" (título que brinca com a expressão "music hall"), o seu terceiro trabalho recentemente editado, é um sério candidato a disco mais surpreendente do ano e está repleto de pérolas como esta música:
Para quem não ficou convencido, pode sempre ouvir este outro excelente tema.

Cidades criativas


O último suplemento Ípsilon do Público (sexta-feira) traz como assunto principal uma reportagem (da autoria do cada vez mais ecléctico jornalista Vítor Belanciano) que deveria ser lida por todos os políticos e agentes económicos de qualquer cidade: a reportagem divulgava a nova teoria da "Era da Criatividade" associada às cidades, defendida pelo investigador Richard Florida, e que está patente nalgumas das mais evoluídas cidades do mundo. Ou seja, o que este ensaísta defende é que, hoje em dia, os critérios para aferir da qualidade e dimensão de uma cidade já não têm tanto a ver com os índices económicos, turísticos ou mesmo culturais. As cidades mais atractivas para os jovens de todo o mundo, aquelas que lideram na dinâmica social e artística, são aquelas que apresentam soluções criativas mais profícuas para a dinâmica social urbana. E não estamos apenas a falar de dinâmica artística realizada em instituições como teatros, óperas ou centros culturais. Estamos a falar dos diversos espaços físicos (interiores e exteriores) da própria cidade, aproveitados como pólos de desenvolvimento de agitação, de iniciativas. Como as ruas, por exemplo. Se em Lisboa existe o exemplo do Bairro Alto e do Chiado como pólos de atracção turística e cultural, em Nova Iorque existe o Soho, em Paris o bairro Marais, em Londres o Brick Lane, em Berlim o Mitte, e por aí fora.
Na reportagem são referidas outras cidades nas quais a dinâmica cultural e artística representam novas formas de identidade urbana: Glasgow, Manchester, Chicago, Estocolmo, Bilbau, Barcelona, Amesterdão. À semelhança do que acontece há uns anos nestas cidades de referência mundial, seria fundamental que os políticos portugueses olhassem para as indústrias culturais como pólos sustentáveis de desenvolvimento do espaço urbano. Ideias criativas de dinamização social e cultural atraem turismo e investimento, rejuvenescendo a vida citadina de bairros, de ruas, de zonas urbanas inteiras. Como refere o arquitecto Tomé Alves: "Durante mais de um século aquilo que distinguia as cidades e lhe atribuía prestígio era uma orquestra sinfónica, museus, uma ópera, uma companhia de ballet. Hoje é preciso muito mais. Uma cidade fervilhante e dinâmica tem que ter espaços alternativos, ao lado de zonas e estruturas culturais de maior visibilidade."

sexta-feira, 30 de maio de 2008

O cinema pedagógico de Buñuel


No mundo académico são habituais as teses sobre pensadores, cientistas, filósofos, escritores, investigadores. O que já não é muito habitual é haver estudiosos que dediquem o objecto da sua investigação a um cineasta em particular, menos ainda, a um cineasta tão particular como o espanhol Luís Buñuel. Foi o que fez o professor Vítor Reia-Baptista, na altura na Universidade do Algarve. O título da tese de mestrado, escrita em inglês, é certeiro e pragmático: “The Heretical Pedagogy of Luis Buñuel - A Study of the Pedagogical Character of the Heresies and Moralities in the Cinema of Luis Buñuel”. Nunca me teria lembrado de olhar o cinema de Buñuel pela perspectiva pedagógica (ainda que heréitca), pelo que esta tese publicada na Biblioteca On-Line de Ciências da Comunicação da Universidade da Beira Interior se torna interessante de ler para os estudiosos do cinema e para meros curiosos na obra de um dos mais provocadores realizadores de sempre. Ler aqui a tese.

quinta-feira, 29 de maio de 2008

A outra utilização do vinil


Numa altura em que os discos de vinil regressam em força como formatos de música e como objectos "fetichistas", não deixa de ser oportuno olhar para o vinil com outra utilidade. Dito de outro modo, entender o disco de vinil e, sobretudo, a respectiva capa como objecto passível de criar uma espécie de ilusão corpórea, humana. O conceito "sleeveface" procura isso mesmo, a construção de imagens num contexto de simbiose entre as capas de discos (com rostos e partes do corpo humano) e partes físicas humanas reais. O resultado é divertido e surpreendente, como documentam estas duas imagens, das muitas que existem neste site. A criatividade visual quase não tem limites e qualquer pessoa que tenha uma boa colecção de discos, alguma paciência e sentido de perspectiva, pode experimentar criar novos contextos para as capas.
Para os não iniciados, convém ver este engenhoso e interessante tutorial:

Inspiração vs. trabalho


"Um leigo pensaria que, para criar, é preciso aguardar a inspiração. É um erro. Não que eu queira negar a importância da inspiração. Pelo contrário, considero-a uma força motriz, que encontramos em toda a actividade humana e que, portanto, não é apenas um monopólio dos artistas. Essa força, porém, só desabrocha quando algum esforço a põe em movimento, e esse esforço é o trabalho."
Igor Stravinsky

Declaração de intenções


quarta-feira, 28 de maio de 2008

Um tiroteio para a posteridade


"Heat - Cidade Sob Pressão"(1995) é um magnífico filme de Michael Mann, um policial que representa uma homenagem às melhores sequências de assaltos a bancos dos westerns clássicos e, simultaneamente, um renovado olhar sobre o género policial. É que para além de um inesquecível duelo entre dois gigantes da representação - Robert de Niro e Al Pacino - este filme contém, porventura, a melhor cena de tiroteio jamais filmada em cinema (e não me esqueço do memorável tiroteio final de "Scarface", também com Al Pacino). São sete minutos e meio absolutamene antológicos e que elevaram o cinema de acção à condição artística (Michael Mann não foi o primeiro a fazê-lo, mas ok). Sete minutos e meio de uma intensidade dramática absorvente e, acima de tudo (coisa rara nos filmes de acção de Hollywood), com uma preocupação visual extremamente realista: repare-se que, assim que começa o tiroteio após o assalto ao banco, a música da banda sonora extingue-se para dar maior autenticidade à violência - e raramente o som das balas e dos seus impactos soaram tão reais e impactantes. Tudo se passa em ruas verdadeiras de Los Angeles, numa encenação visual quase operática e num ritmo prodigioso. E por último, a fabulosa realização enfatizada com dois recursos muito bem manobrados: o trabalho de câmara e a montagem. Uma montagem milimétrica, de um equilíbrio a toda a prova, dando ao espectador a perspectiva de ambas as partes (polícias e ladrões), planos curtos e planos mais demorados, imprimindo a sensação de adrenalina pura, sem tempo para retomar o fôlego. Estes sete minutos e meio de "Heat" serão estudados, ao pormenor, nas melhores escolas de cinema do mundo. E Quentin Tarantino bem pode viver, como Manoel de Oliveira, 100 anos, que dificilmente conseguirá igualar ou superar esta sequência de acção imparável e - arriscaria mesmo - perfeita.

Vinho ao sabor da música


Nunca fui um grande apreciador de vinhos, mas esta notícia não deixa de me interessar: um grupo de psicólogos da Universidade Heriot Watt, em Edimburgo, realizou uma pesquisa, envolvendo 250 estudantes, que demonstra uma ligação entre a música que se está a ouvir e o sabor do vinho que se está a beber. De acordo com o estudo desenvolvido, os especialistas concluíram que um copo de "cabernet" saboreado ao som de música mais pesada, fazia o consumidor descrevê-lo como mais "poderoso, rico e robusto", em 60 por cento das ocasiões, do que se o provasse em silêncio. Os mesmos investigadores chegaram a outra conclusão curiosa: o sabor do vinho tipo "cabernet" é mais afectado por músicas pesadas, enquanto o vinho "chardonnay" tem a percepção modificada por "batidas energéticos ritmadas".
Durante um dos testes, foram tocadas quatro músicas diferentes para os mesmos vinhos: "Carmina Burana" de Carl Orff ("poderosa e pesada"); "Valsa das Flores", de Tchaikovsky ("subtil e refinada"); "Just Can`t Get Enough", dos Nouvelle Vague ("energética e refrescante") e, por fim, "Slow Breakdown", de Michael Brook ("melosa e leve").
Ao som de "Just Can`t Get Enough", dos Nouvelle Vague, o vinho branco foi considerado, em mais de 40 por cento, "energético e refrescante". Já ao som de "Slow Breakdown", de Michael Brook, apenas 26 por cento o considerou "meloso e leve". Por seu lado, o vinho tinto teve uma variação de 60 por cento do sabor quando acompanhado por Carmina Burana.
Adrian North foi o professor que liderou o estudo e, depois destes resultados, acredita que os produtores de vinhos podem e devem começar a imprimir recomendações musicais nos rótulos dos vinhos. Agora só faltam estudos que comprovem a relação entre o consumo de tremoços e a música de Quim Barreiros.

Tom Waits - um bilhetinho s.f.f.


Boa notícia: Tom Waits vai iniciar uma digressão pela Europa já este Verão.
Má notícia: não passa por Portugal (talvez com uma petiçãozinha viesse, mas já não há tempo).
De qualquer forma, vai tocar em Espanha em duas datas. Deve haver muitos fãs portugueses tentados a ir ver o homem da voz rouca a terras de "nuestros hermanos". Assim sendo, fica facilitada a vida com a informação discriminada em baixo. Dia e hora dos concertos e contactos para adquirir os tão desejados bilhetes, disponíveis já a partir do dia 2 de Junho, segunda-feira próxima. A procura internacional por um bilhetinho deve ser tanta que não será fácil adquiri-lo , mas não custa nada tentar (só não consegui apurar o preço do mesmo - mas para ver Tom Waits ao vivo, quem liga ao preço do bilhete?).

July 12 - SAN SEBASTIAN, SPAIN - Auditorium Kursaal - Ticket Hotline 902 10 12 12. International enquiries +34 933 262 946. Tickets also available online from http://www.telentrada.com/. Tickets on sale Monday 2nd June at 9.00AM.

July 14 & 15 - BARCELONA, SPAIN - Auditorium Forum - Ticket Hotline 902 10 12 12. International enquiries +34 933 262 946. Tickets also available online from http://www.telentrada.com/. Tickets on sale Monday 2nd June at 9.00AM.

terça-feira, 27 de maio de 2008

Os mais inlfuentes da História da Música

Ao pesquisar na Internet sobre uma assunto relacionado com música clássica, dei de caras com uma lista que compila os 15 compositores mais influentes da história da música. Tarefa deveras complicada e arriscada. Não conheço qual a validade científica desta eleição e quais os critérios, mas não deixo de ficar surpreendido com os primeiros lugares (sobretudo os três primeiros). Outra surpresa prende-se com o apelido Bach: no 10º lugar está Carl Philip Emanuel Bach, filho do bem mais importante Johann Sebastian Bach, que nem sequer se encontra na lista dos 15 seleccionados!
Outra espantosa surpresa mas absolutamente justificável: o segundo lugar atribuído a uma das mais importantes pedagogas e professoras musicais do século XX: Nadia Boulanger. Apesar do seu trabalho de composição não ter sido influente na evolução estética da música erudita, a sua pedagogia foi-o de forma determinante. Basta constatar a impressionante lista de alunos que lhe passaram pelas mãos e que formou em termos académicos: Philip Glass, Aaron Copland, Astor Piazzolla, Igor Stravinsky, Leonard Bernstein, Quincy Jones, Egberto Gismonti, John Eliot Gardiner, Burt Bacharach, entre outros.
Edgar Varèse
, referido na segunda posição, é um compositor essencial do século XX e, de facto, a sua obra influenciou gerações de compositores e músicos de várias latitudes musicais, desde Stockhausen a Frank Zappa. Varèse foi um criador visionário, ávido em experimentar novas fórmulas estéticas e soluções sonoras (foi com este compositor que a percussão e a electrónica começaram a introduzir-se na linguagem musical erudita). Por sua vez, John Cage, em primeiro lugar, acaba também por ser um lugar merecido, dada a importância teórica e as revoluções estéticas que o compositor americano levou a cabo ao longo da sua profícua carreira. Mas listas são listas, sempre subjectivas, mutáveis e ao sabor dos tempos e pontos de vista. Esta é mais uma e, ainda que não seja uma referência absoluta, tem o mérito de suscitar a discussão e a reflexão.

Por ordem decrescente:

15 - Saint Hildegard Von Bingen (1098 - 1179)
14 - Guillaume Dufay (1397 - 1474)
13 - Giovanni Pierluigi da Palestrina (1525? - 1594)
12 -
Antonio Vivaldi (1678 - 1741)
11 - George Frideric Handel (1685 - 1759)
10 - Carl Philipp Emanuel Bach (1714 - 1788)
9 - Franz Joseph Haydn (1732 - 1809)
8 - Wolfgang Amadeus Mozart (1756 - 1791)
7 - Giuseppe Verdi (1813 - 1901)
6 - Richard Wagner (1813 - 1883)
5 - Gustav Mahler (1860 - 1911)
4 - Igor Stravinsky (1882 - 1971)
3 - Edgard Varèse (1883 - 1965)
2 - Nadia Boulanger (1887 - 1979
1 - John Cage (1912 - 1992)

Pollack


Morreu ontem o realizador Sydney Pollack, aos 73 anos, vítima de cancro detectado há apenas 10 meses. Num certo ponto de vista, Pollack integra com Scorsese e Eastwood, a última geração clássica do cinema de Hollywood. Ainda há poucos dias tinha visto o seu último filme em DVD: "A Intérprete" (2005), com Sean Penn e Nicole Kidman. Um interessante thriller político passado nos bastidores da sede da ONU. Mas Pollack vai ser lembrado por muito mais do que o seu derradeiro filme: "África Minha" (1985) com uma fabulosa Meryl Streep, está cotado na lista do Imdb como o 13º melhor filme de sempre (ganhou dois Óscares). "Tootsie" (1983), com um magnífico Dustin Hoffman travestido de mulher. "3 Dias do Condor"(1975), um filme de espionagem nomeado aos Óscares com Robert Redford e Faye Dunaway. Paralelamente à sua actividade de realizador, não se pode esquecer o trabalho importante de Pollack como produtor ("Cold Mountain" e "Michael Clayton") e actor (fez parte do naipe de actores do último filme de Stanley Kubrick, "De Olhos Bem Fechados", 1999).
Nos extras do filme "A Intérprete", Sydney Pollack comenta que o trabalho de realização é um trabalho penoso e difícil. Não retira grande prazer das filmagens, exceptuando no trabalho de montar o filme, que é aquela faceta do trabalho cinematográfico em que se sentia mais à vontade para criar no isolamento da sala de montagem. Pollack dixit: "I don't value a film I've enjoyed making. If it's good, it's damned hard work."

segunda-feira, 26 de maio de 2008

Selecção - alguém pediu informação rigorosa?


Repare-se na insanidade a que chegou a informação televisiva a propósito da selecção nacional. Pensava eu que fazia bem em ver o noticiário da noite na RTP, com esperança ingénua de ser brindado com imparcialidade, rigor e objectividade no tratamento da notícia (já que as estações privadas abusam do espectáculo sensacionalista e fútil). Eis quando sou surpreendido com duas notícias que são absolutos dislates informativos (da RTP, registe-se):
1ª notícia - "Luís Filipe Scolari não foi reconhecido numa aldeia de Viseu. Numa aldeia desertificada, onde moram apenas duas pessoas, nenhum reconheceu o seleccionador."
Comentário: Escândalo! Horror! Tragédia! Os dois habitantes da aldeia, por sinal octogenários, por sinal a viverem isolados atrás de barrocos, deveriam ser chicoteados por ignorarem quem comanda os destinos de um grupo de gajos bem pagos que corre atrás de uma bola.
2ª notícia - "Selecção portuguesa vai amanhã treinar no estádio de Tondela. O jornalista Luís Baila vai até ao centro do relvado do estádio e corre (literalmente) ao lado de um funcionário que, diligentemente, cortava a relva com um cortador de relva a motor: "Então, é uma grande responsabilidade cortar a relva para amanhã os craques da selecção pisarem o relvado, não é?"
Comentário: Mas porque raio o cortador de relva não passou por cima dos pés do jornalista?

Notícia musical do dia


Phill Collins, autor de algumas das mais insuportáveis e lamechas baladas e cançonetas-pop dos anos 80 e 90, divulga ao mundo que, aos 57 anos de idade, vai desistir da carreira artística (para se dedicar à família). Este amor aos seus entes queridos só lhe fica bem. Collins foi um baterista de valor quando esteve nos Genesis. Só que a sua carreira a solo, de muito sucesso comercial e de grande popularidade, diga-se, foi polvilhada com canções românticas de fazer chorar as pedras da calçada. Preciosidades como “Against All Odds”, “Another Day in Paradise”, “One More Night, ou “A Groovy Kind of Love” infernizaram as rádios e os tops de single dos anos 80 (por outro lado, embelezaram os serões radiofónicos da RFM e da Comercial). Para os fãs, será um desgosto o anúncio desta retirada de cena. Para os detractores, uma bênção. Aleluia!

domingo, 25 de maio de 2008

Cannes e os prémios


Este Domingo foram atribuídos os prémios da 61ª edição do Festival de Cinema de Cannes. A desejada e sempre muito competitiva Palma de Ouro foi ganha pelo realizador francês Laurent Cantet, pelo filme "Entre Les Murs", sobre a problemática das relações entre professores e alunos num liceu francês. Apesar de não ter visto, obviamente, nenhum filme a concurso, fiquei ainda assim contente pelo facto do cineasta turco Nuri Bilge Ceylan ter ganho o não menos desejado prémio de Realização com o filme "Three Monkeys".
É que Nuri Ceylan é, indiscutivelmente, um dos mais singulares e originais cineastas da actualidade, herdeiro da sensibilidade estética de um Antonioni ou de um Tarkovski. Tem apenas seis filmes no activo, dois dos quais são verdadeiras peças de relojoaria em forma de imagens e sons: "Uzak" (2002 - ganhou 17 prémios internacionais e o Grande Prémio do Júri em Cannes 2003) e "Climas" (um dos melhores filmes de 2006 - seleccionado à Palma de Ouro em Cannes desse ano). A linguagem de Nuri é minimalista, feita de silêncios e gestos, de meditações existenciais, de longos e belos planos de personagens e paisagens que se complementam. Um cinema de grande exigência formal e visual (tem um passado de fotógrafo e essa preocupação nota-se na qualidade plástica dos seus filmes).
Veja-se o magnífico trailer do filme "Three Monkeys" que acaba de vencer o prémio de realização de Cannes. Em escassos 70 fabulosos segundos de trailer, percebemos que Nuri Bilge Ceylan é um esplendoroso fazedor de imagens. Ah, e atente-se também ao som, parceiro irrefutável do seu cinema. Um filme muito aguardado, portanto.

sexta-feira, 23 de maio de 2008

Um novo "Bad Lieutenant"?


Lê-se e fica-se espantado: segundo o "Hollywood Reporter", Nicolas Cage vai protagonizar o filme "Bad Lieutenant", com realização de Werner Herzog. Acontece que se trata de um remake de um fabuloso filme realizado em 1992 pelo grande cineasta independente Abel Ferrara. Nesse filme, Harvey Keitel tem uma interpretação insuperável como o "mau tenente" corrupto, viciado em sexo, drogas e religião. À falta de imaginação e criatividade, parece que Hollywood está obcecado em fazer remakes por remakes. E ainda por cima, remakes de filmes de grande qualidade. Para quê? Foi o que aconteceu com o filme "Funny Games", comentado neste post.

Arte, valor, contexto

Esta é uma experiência quase ready-made à Duchamp: retirar do contexto formal de uma sala de concerto um violinista famoso e consagrado e colocá-lo a tocar, anonimamente, numa estação de metro. Para quê? Para perceber que a valorização artística que qualquer pessoa faz de um determinado fenómeno ou acto depende, e muito, do contexto em que este ocorre. O vídeo em baixo descreve-se em poucas palavras: alguém entra na estação do metro de Washington, vestindo jeans, camisa e boné, encosta-se próximo à entrada, tira o violino da caixa e começa a tocar com entusiasmo para a multidão que passa por ali, na hora de ponta matinal. Como quase sempre acontece, os transeuntes ignoraram a interpretação violinística do músico durante 45 minutos de actuação
O interessante vem agora: o músico que tocava não era nenhum músico de 3ª categoria a tentar sacar umas moedas para comprar um Big Mac. Era, simplesmente, aquele que é considerado como um dos melhores violinistas mundiais: Joshua Bell, executando peças musicais consagradas, num instrumento raríssimo e valiosíssimo, um esplendoroso Stradivarius de 1713, estimado em mais de 3 milhões de dólares. Alguns dias antes, Bell tinha tocado no Symphony Hall de Boston, onde os melhores lugares custam a bagatela de 1000 dólares. Esta iniciativa foi realizada pelo jornal The Washington Post e a intenção era a de lançar um debate sobre três tópicos intimamente ligados: valor, contexto e arte. O Washington Post concluiu que o virtuoso violinista Joshua Bell era uma obra de arte sem moldura. Um artefacto de luxo sem etiqueta de marca. Talvez. As convenções sociais ligadas à apreciação estética são orientadas para dar mais valor ao contexto do que ao conteúdo e à forma. Repare-se:

O que gostaria era de ver uma experiência ao "contrário": um músico amador e sem currículo a tocar com uma grande orquestra numa grande instituição consagrada à fruição erudita das elites bem pensantes. O contexto estava definido, a arte bem enquadrada. E o valor? Dependeria dos dois primeiros pressupostos? Pois...

Obscena - virtual e física


Num mundo cada vez mais digital e informatizado, por vezes somos levados a pensar que a imprensa escrita tem tendência a acabar no seu formato de edição em papel. Ou, por outro lado, que cada vez mais o suporte de informação digital na internet é o suporte privilegiado em relação ao papel. Nem sempre é assim e, por enquanto, as duas formas de informação são válidas. Vem isto a propósito da excelente revista de artes performativas, a Obscena. Pode ser lida aqui. Começou por ser uma revista exclusivamente online (em Fevereiro de 2007). Passados alguns meses e outros tantos números, passou do formato digital para... papel de revista. Pode-se comprá-la em qualquer quiosque por 4,20€, mas também é possível descarregar em PDF alguns dos seus melhores artigos e reportagens. Apesar de ser uma aposta arriscada, parece-me antes de tudo uma excelente política de promoção e marketing. Por um lado, o formato electrónico não é desvalorizado, cativando as novas gerações habituadas aos conteúdos da internet e das formas de cibercultura; por outro, investe-se no formato papel porque, quer queiramos quer não, o formato de "revista física" é ainda o melhor formato para o exercício da leitura e como objecto gráfico e conceptual. Afinal, ainda há bons exemplos de convivialidade entre o mundo da escrita em papel e o do digital. Seja como for, vale bem a pena ler a Obscena, seja em que formato for.

A avalanche psiquiátrica

O projecto electrónico The Avalanches, colectivo de activistas oriundos da Austrália, pratica uma singular mistura de sampling, DJ, pop, hip-hop, estilhaços sonoros e múltiplos géneros musicais. Em 2000 lançaram um grande álbum (único até à data) concebido à base de samples musicais de outrem: "Since I Left You". O videoclip que se segue é um dos mais bizarros e surreais de sempre. O tema, "Frontier Psychiatry", é fruto de um minucioso trabalho de colagem de vozes, ritmos e beats. Visualmente, o videoclip é desconcertante (à beira da loucura - fazendo jus ao título da música), sarcástico e muito bem humorado:

quinta-feira, 22 de maio de 2008

A genealogia do beijo no cinema


O primeiro filme vencedor do Óscar de Melhor Filme (1927), "Wings" ("Asas"), foi o primeiro filme a mostrar dois homens a beijarem-se. Tratava-se de um beijo na face, entre dois grandes amigos, no momento em que um deles estava à morte, ferido numa batalha aérea. O beijo foi apresentado de forma fraternal, absolutamente não-sexual e não-erótica. Desde esse beijo fraternal entre dois homens, em 1927, até ao beijo homossexual explícito do filme "Brokeback Mountain", muita coisa se passou na genealogia do beijo no cinema.
O beijo sempre foi um elemento primordial nas histórias românticas. Expressão passional e amorosa por excelência, o beijo teve no cinema inúmeras formas de representação: mais ou menos eróticos, ternos, apaixonados, violentos, prolongados, súbitos, sedutores, contrariados, etc. E já agora lembremo-nos da homenagem que o filme "Cinema Paradiso" (Giuseppe Tornatore, 1988) presta aos beijos clássicos do cinema.
Um site elaborou a lista das dez melhores sequências de beijos no cinema. Estranha-se o facto de não constar o célebre beijo na praia entre Burt Lancaster e Deborah Kerr no filme "From Here to Eternity" (de Fred Zinnemman, 1953):
1: CLARK GABLE and VIVIEN LEIGH - GONE WITH THE WIND
2: OMAR SHARIF and JULIE CHRISTIE - DR ZHIVAGO
3:
HUMPHREY BOGART and INGRID BERGMAN - CASABLANCA
4: HUMPHREY BOGART and AUDREY HEPBURN - SABRINA
5:
ROCK HUDSON and DORIS DAY - PILLOW TALK
6: JUSTIN HENRY and MOLLY RINGWALD - SIXTEEN CANDLES
7:
ELIZABETH TAYLOR and MONTY CLIFT - A PLACE IN THE SUN
8: JUDD NELSON and MOLLY RINGWALD - THE BREAKFAST CLUB
9: GENE KELLY and DEBBIE REYNOLDS - SINGIN' IN THE RAIN
10:
ETHAN HAWKE and WINONA RYDER - REALITY BITES.

Entretanto, se estes são os dez beijos mais glamorosos e românticos do cinema, eu elejo o beijo mais macabro e arrepiante de sempre:

Alguém descobre de que filme se trata ou o que se passa nesta sequência?

Ugh!

Mas afinal quel é o problema deste senhor?

Canções depressivas



Todos sabemos por experiência própria que a música provoca emoções. Das mais simples às mais complexas, das reacções mais inofensivas às mais violentas, alegres ou depressivas. E se alguém seleccionasse uma lista das canções pop mais deprimentes de sempre? A resposta imediata aqui!
PS - Por questões de sanidade mental não convém ouvir as dez canções da lista de uma vez só.

quarta-feira, 21 de maio de 2008

O Woody Allen sem esperança

A fazer valer as reacções criticas ao último filme do Woody Allen - “Vicky Cristina Barcelona” - estreado no festival de Cannes, estaremos perante um dos filmes mais fracassados e desinspirados do autor de “Hanna e Suas Irmãs”. João Paulo Alcobia (enviado da Antena 3) chega mesmo a classificar o filme como o “pior” da carreira do realizador nova-iorquino. As criticas internacionais também não são muito animadoras. A ser verdade, era algo que se esperava que acontecesse, mais ano, menos ano. Quem faz filmes a um ritmo de um por ano acaba, tendencialmente, por comprometer a qualidade e a regularidade criativas. O último grande filme de Allen da última década é, sem dúvida, o espantoso “Match Point”, um retrato negríssimo da alma humana, da casualidade da vida, da imprevisibilidade do amor e dos efeitos hediondos da ambição revestida de obsessão. Quase, quase ao mesmo nível de “Match Point” está o filme “O Sonho de Cassandra” (2007), outro fresco brutal sobre as paixões humanas extremas que levam à morte, à destruição das relações, ao desabar do sonho de dar sentido à existência (“Scoop”, de 2006 é já uma comédia mediana com parcos rasgos de criatividade assinaláveis).
Os dilemas morais e existenciais, as angústias e medos interiores que perpassam por estes dois filmes da carreira de Woody Allen tomam proporções emocionais insuportáveis. Para os personagens e para os espectadores. São duas obras de um pessimismo pragmático (longe das coordenadas do humor “nonsense” a que nos habituou Allen) que olham a condição humana com uma frieza perturbante e cínica, pejada de pecados infames, sem apaziguamentos de qualquer ordem moral, sem esperança nem redenção. Woody Allen já tinha mostrado ao mundo um filme que espelhava esta visão desesperada da moral ambígua, quando realizou o sublime filme “Crimes e Escapadelas” (1989), com um Martin Landau estarrecedor. É como se autores pessimistas como Schopenhauer, Emile Cioran e Thomas Bernard contaminassem o espírito de Woody Allen a cada novo filme (à excepção deste último em Cannes, que parece ser um regresso ao registo de comédia light).
“Match Point” e “O Sonho de Cassandra” podem ser considerados um díptico e, se juntarmos o referido “Crimes e Escapadelas”, teremos a configuração de um portentoso tríptico. É a veia mais lúgubre e arrasadora de Woody Allen, que destila crimes sem sentido, mortes por “obrigação moral”, ódios mundanos e metafísicos, desnorte existencial e pitadas de um subtil humor negro. São obras que ficarão para a história do cinema como referências absolutas de um cinema de autor extremamente pessoal, que desenvolveu uma abordagem temática própria. Uma temática com preocupações filosóficas e morais que belisca (se é que não queima) o conceito que temos de natureza humana, de esperança na vida, no mundo e no homem. É o Woody Allen mais exitencialista que se possa imaginar, sem esperança de redenção nem fé no que quer que seja.

O videoclip da polémica

Um vídeo do duo francês de música electrónica Justice está a provocar um aceso debate em França sobre a utilização da Internet como veículo de expressão artística. O vídeo da música Stress acompanha um grupo de jovens dos subúrbios de Paris que provoca distúrbios por onde passam – roubo, assédio, destruição de um café, confrontos com a polícia, carjacking, terminando com a queima de um veículo. Há já sociólogos e analistas que defendem e condenam o conteúdo violento do videoclip, revelando influências dos filmes “O Ódio”, “Manual de Instruções para Crimes Banais” ou “Laranja Mecânica”. A mim parece-me que, a haver influências, essas são do realizador Chris Cunningham, autor de alguns dos melhores videoclips da última década (“Come to Daddy, Rubber Johnny), criador visual de grande requinte formal e estilístico. E Stresstem a marca visual de Cunningham.
Tirando as eventuais influências, eu julgo que este videoclip é, sobretudo, um bom golpe de marketing. Nada melhor do que pegar no sempre escaldante tema da violência racial e de subúrbios para motivar os holofotes da comunicação social e agitar a opinião pública. A direcção artística do videoclip está convincente e bem conseguida, mas repare-se como a sonoplastia/cacofonia sonora se sobrepõe à própria música (ouvem-se mais ruídos gerados pela violência do que a própria música). Por isso parece haver uma confusão de referências conceptuais. Por um lado é um videoclip para promover uma música, por outro parece ser um manifesto sobre a violência e as suas diversas formas de manifestação. Os Justice defendem que quiseram fazer uma paródia à forma como a comunicação social tratou o tema da violência aquando dos motins em França, há dois anos atrás. Nada mais errado. Aqui não existem quaisquer indícios de paródia, mas sim violência gráfica directa e frontal, que pretende passar por "séria" e "realista". A violência gratuita pela violência gratuita com intuito de "chocar" (quem?). Num panorama audiovisual diário apinhado de imagens de violência, este videoclip só chocará os mais sensíveis e incautos.
E que ninguém compare este objecto aos filmes citados (sobretudo "Laranja Mecânica" de Kubrick). O realizador de “Stress” é Romain Gravas – filho do realizador Costa-Gravas –, e tem recebido as mais variadas críticas. Não admira. A violência está muito bem encenada, só que muito mal contextualizada. Qual é verdadeiramente a mensagem do videoclip? Não acredito que seja no sentido de incitar a actos violentos como os que são mostrados nestas imagens. Seria demasiado ingénuo pensar isso. Parece-me é que os músicos dos Justice não pensaram convenientemente nas consequências. Ou então pensaram demasiado bem e agora sofrem (ou beneficiam, conforme a perspectiva) com as opções tomadas.

terça-feira, 20 de maio de 2008

Lomografia - fotografar ao sabor do instante


A Lomografia propriamente dita começa em Praga em 1991, quando dois jovens vienenses, de férias na capital da República Checa, descobriram a máquina Lomo. Começaram então a fotografar tudo, muitas vezes sem sequer olhar através da objectiva. De regresso a casa, o fascínio dos dois fotógrafos pela cor, a luz e a qualidade das imagens ( focadas ou desfocadas) foi tão contagioso que rapidamente a moda das Lomo se espalhou entre os jovens da cidade. Em 1995 nascia em Viena, na Áustria, a Sociedade Lomográfica e a primeira LomoEmbaixada, com o objectivo de impedir o desaparecimento das pequenas máquinas fotográficas russas.
Os manuais referem que a Lomografia é a arte de fotografar com uma câmara Lomo, de forma imprevisível, sem encenações nem preocupações de ordem técnica (enquadramento, luz, objectiva…). É uma forma de captar a realidade do quotidiano de forma original, com imagens muito coloridas, contagiantes, e enquadramentos invulgares. Em cada clique com uma máquina Lomo capta-se um momento da vida que ficará representado de forma que nunca imaginaríamos ser possível. A surpresa do resultado final é sempre a parte mais estimulante resultante do exercício de fotografar com uma Lomo. Existe uma considerável variedade e diversidade de máquinas de fotografar Lomo, que aliam a simplicidade de funcionamento com a surpreendente qualidade de imagem (e cada uma das máquinas permite efeitos distintos). O espírito da Lomografia é fotografar ao acaso, ao sabor do instante, sem preparação prévia ou condicionalismos técnicos. Há quase sempre reacções de espanto e de surpresa com as imagens que se captam com uma Lomo, como se a realidade estivesse surpreendentemente transfigurada após cada "click".
Para compreender o espírito da fotografia Lomo, convém ler as 10 regras da Lomografia. Aqui.

Gastar uns trocos para satisfazer a namorada


Este senhor desembolsou uns trocos da sua faraónica fortuna pessoal para comprar, em poucos dias, o quadro “Benefitis Supervisor Sleeping” de Lucien Freud (por 21,33 milhões de Euros) e um tríptico de Francis Bacon por 54,4 milhões. De uma só vez, Roman Abramovich, o dono do clube londrino Chelsea gastou mais de 70 milhões de Euros em pintura. É obra. Quer dizer: seria obra para qualquer cidadão comum, mas para quem tem cerca de 18 mil milhões de dólares no mealheiro (ou debaixo do colchão), é coisa pouca. Diz-se que o magnata russo foi influenciado para adquirir estas obras por causa da influência da nova namorada, Dasha Zhukova, moça interessada em arte contemporânea, ao ponto de querer abrir uma galeria de arte. A isto se chama amor... à arte.

As ideias surrealistas à venda


André Breton (na imagem) lançou petróleo para a fogueira das artes de vanguarda quando, em 1924, editou o "Manifesto do Surrealismo". Um verdadeiro manual de insurreiçãoo artística, intelectual e estética que viria a influenciar grande parte da criação artística do restante século XX. Os manuscritos deste célebre documento estavam na posse de Simone Collinet, primeira mulher do artista, e vão ser leiloados, hoje mesmo, na capital francesa. O preço de licitação situa-se entre os 200 mil e os 300 mil euros (gostava de saber qual seria a reacção de Breton, caso fosse vivo, a esta exorbitância de dinheiro por um manifesto que, claramente, repudiava os valores relacionados com o vil metal e bens materiais de consumo).
O texto do "Manifesto do Surrealismo" é um texto muito interessante e rico em princípios de intenções, mas lido hoje, é-o sobretudo para estudantes de artes e curiosos. Foi um texto extremamente efémero e datado, visto que o Surrealismo, enquanto movimento artístico oficial e organizado, durou poucos anos. No entanto, mantém importância histórica pela forma como deixou o legado e marcou o pensamento artístico do século XX e grande parte da literatura, pintura, poesia e cinema. No mesmo manifesto, Breton define Surrealismo da seguinte forma: "Automatismo psíquico pelo qual alguém se propõe a exprimir, seja verbalmente, seja por escrito, seja de qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento".
Quem quiser ler online ou descarregar o "Manifesto do Surrealismo", basta clicar aqui.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Foto do dia

Manoel de Oliveira, cineasta português, a ser homenageado no festival de Cannes. Cumprimento de outro grande cineasta, Clint Eastwood, 23 anos mais novo que Oliveira. Duas enormes personalidades do cinema para uma bela imagem que dignifica a arte de ambos, de todos, de sempre.

Canibalismo - o último dos tabus


Não sou antropólogo nem sociólogo mas atrevo-me a dizer que na sociedade moderna continuam a persistir dois tabus difíceis de abordar: o incesto e o canibalismo. Só pronunciar estas duas palavras faz tremer de horror os mais sensíveis. É compreensível. Ambas práticas remontam a um passado histórico muito longínquo, tão longínquo quanto o tempo que o homem pisa o mundo. Deixemos o incesto para segundas núpcias (salvo seja!) e olhemos mais de perto o canibalismo. Por questões culturais ou de necessidade devido à fome extrema, o canibalismo não deixa ninguém indiferente, porquanto hediondo se torna a sua prática. Mas como muitos temas hediondos, este também não deixa de exercer fascínio. Um fascínio frio e racional, como é óbvio. O acto de devorar carne humana por questões religiosas (magia negra) ou culturais é um acto irracional e completamente desviante (associado a mentes psicopatas e paranóicas). Já o acto de comer por extrema necessidade com vista à própria sobrevivência devido a factores externos como a fome, alivia o peso moral do mesmo. Foi o que aconteceu em Outubro de 1972, quando teve início uma das histórias de sobrevivência mais controversas e inspiradoras: um avião que transportava uma equipa júnior de râguebi do Uruguai despenhou-se nas montanhas dos Andes. Alguns passageiros tiveram morte imediata, mas a maior parte sobreviveu. Durante oito dias, ficaram à espera de serem salvos. Mas o socorro nunca chegou e eles souberam pela rádio que as buscas tinham sido abandonadas. Rapidamente a comida e a bebida se esgotaram. Forçados a viver a temperaturas abaixo de zero durante dez semanas, os sobreviventes suportaram o inimaginável até que tomara uma decisão radical: comer a carne dos colegas mortos. O filme "Alive" ("Estamos Vivos!", 1993) retrata este episódio perturbante.
Mas o que mais choca no canibalismo é aquela vertente que conota o acto de comer carne humana como a mais elevada expressão de poder da mente de um predador sexual psicopata ou de um assassino em série. E ao longo da história, sobretudo do século XX, muitos exemplos macabros houve que se enquadram nesta tipologia. O mais recente caso é o do alemão Armin Meiwes, canibal de Rotemburgo, que violou e torturou um outro homem que conheceu na internet e que se voluntariou para o efeito. Depois de morto, fatiou o corpo e comeu diversas porções do mesmo (degustou 20 kg de carne) - relato sintetizado pode ser lido aqui. Da carne humana disse Armin: "é semelhante ao da carne de porco, um pouco mais amarga e mais forte, mas um sabor muito bom."
E o que dizer do aparentemente tranquilo fazendeiro americano Ed Gein (1906 - 1984), que serviu de inspiração para os filmes "Psycho" e "O Silêncio dos Inocentes". Hannibal - "The Cannibal" - Lecter não é apenas um mero personagem de ficção, visto que o bem real assassino Ed Gein serviu de inspiração. E o que dizer de Andrei Chikatilo, o carniceiro de Rostov (Rússia), que confessou ter morto, torturado, violado e comido o corpo de 53 mulheres e crianças entre 1978 e 1990? E o mais famoso e recente serial-killer americano: Jeffrey Dahmer, deu que falar quando foi descoberto, em princípios de 1990, e se descobriu que tinha sido autor de horríveis crimes que misturavam violação, necrofilia e canibalismo. E exemplos grotescos não faltam... No cinema, o filme mais célebre e polémico sobre canibalismo é o perturbador "Holocausto Canibal" (1980) de Ruggero Deodato (na imagem), um suposto "snuff movie" (que não é) com violência gráfica e horror sem escrúpulos.
Daí que o livro (na imagem) "Come o Teu Próximo - História do Canibalismo" (Editorial Magnólia) seja um livro corajoso mas que custa a ler pelo conteúdo explícito (e que pode custar a comprar: o empregado da livraria poderá sempre ficar a pensar: "mas este tipo interessa-se por este tema? Será que gosta de carne humana?"). É um livro duríssimo, que explora as raízes do canibalismo e as várias configurações do mesmo, oferecendo exemplos ilustrativos que vão das tribos mais isoladas e obscuras aos serial-killers mais psicóticos das sociedades modernas, percorrendo um curso temporal que vai da história antiga à actualidade. É um mergulho sem regresso aos nossos próprios medos e temores, um confronto directo com o mundo mais obscuro e demente da natureza humana.

Música caleidoscópica

Não é por acaso que no youtube os dois primeiros comentários a este vídeo são antagónicos: “This is super cool!” vs. “The horror, the horror”. Nem podia ser de outra forma: o compositor americano Philip Glass divide paixões, entre o fervor fanático e o ódio avassalador. A sua música esteve ancorada na estética minimal repetitiva para depois evoluir em distintas ramificações estilísticas ao longo dos anos. O que este vídeo documenta é a fase criativa mais febril e estonteante de Glass. O Philip Glass Ensemble interpreta o trecho “Train Spaceship Part 2” da ópera-que-revolucionou-a-ópera “Einstein on The Beach”, escrita em 1976 com encenação de Robert Wilson. Neste vídeo vemos um Philip Glass jovem e transbordante de energia a tocar órgão e a coordenar os restantes instrumentistas. Cabe dizer que se trata de 6 minutos de grande intensidade sonora, com flutuações melódicas, harmónicas e rítmicas subtis e hipnotizantes (era esse um dos efeitos da música repetitiva). O domínio do ritmo e das dinâmicas da composição de Glass é impactante, a forma como a voz se vai enquadrando na densa estrutura sonora é digna de nota. Existe uma ilusão de repetição, já que a cada sequência melódica Glass inflitra pequenas variações de molde a que surjam, paulatinamente, novos motivos de interesse musical, num processo quase caleidoscópico. É preciso abrir a mente para fruir esta descarga sonora de Glass. E já deu para perceber que, com estas palavras, me encontro do lado da barricada dos que dizem: “This is super cool!”.



DVD do mês


Na capa do DVD lê-se : "Um dos mais comoventes e brutalmente honestos filmes acerca do suicídio." Não é preciso dizer mais nada.

domingo, 18 de maio de 2008

Amália em filme... brevemente



É uma iniciativa inédita de marketing: no festival de cinema de Cannes foi promovido um filme português que... ainda nem começou a ser filmado. O filme pretende ser uma biografia da maior voz do fado português, Amália Rodrigues. Vai começar a ser rodado em breve, intitula-se "Amália - a Voz do Povo", terá a realização assegurada por Carlos Coelho da Silva e a produção de Manuel da Fonseca (Valentim de Carvalho e RTP). Quem irá assumir a grande responsabilidade de encarnar Amália? Uma jovem debutante no cinema chamada Sandra Barata Belo. Não se lhe conhecem dotes interpretativos ou vocais mas, pelo menos fisicamente, é muito parecida com Amália Rodrigues. Assim, os jornalistas nacionais e estrangeiros no festival de Cannes ficaram a saber, porventura com um ano de antecedência face à provável data de estreia (em Cannes 2009?), que Portugal se prepara para lançar ao mundo um filme sobre a cantora de "Povo Que Lavas No Rio". A isto se chama fazer bem o trabalho de casa.

Polanski - documentário controverso



"Roman Polanski: Wanted and Desired" é um documentário que deu que falar no último festival de cinema de Sundance. Produzido pelo cineasta Steven Soderbergh e realizado por Marina Zenovich (imagem à esquerda), retrata a vida conturbada que o realizador de "O Pianista" teve nos EUA após o massacre da esposa Sharon Tate (1969). Designadamente, o documentário foca o processo de acusação de pedofilia que as autoridades americanas moveram contra Polanski (consta que Polanski terá abusado sexualmente de uma menina de 11 anos em 1973), facto que o obrigou a emigrar para a Europa. Diz-se que este documentário investiga o caso sob vários pontos de vista e analisa as consequências que teve para o realizador. De resto, é de tal forma pertinente o conteúdo do filme que tanto pode agradar ou desagradar profundamente aos fãs do cineasta. "Polanski: Wanted and Desired" irá estrear em Julho nos EUA e, provavelmente, só depois do Verão chegará aos ecrãs europeus. Enquanto esperamos, vale a pena ler a entrevista à realizadora no site da Premiere americana. Aqui.

Os pensamentos de Kubrick


Stanley Kubrick foi um realizador que cultivou um estilo de vida quase eremita: durante toda a carreira pugnou por um acentuado ascetismo social e profissional. Praticamente não dava entrevistas a jornalistas, furtava-se às festas das estreias dos seus filmes, não mantinha relacionamento com outros realizadores ou actores, nunca escreveu um livro de memórias ou para explicar o seu cinema (como fizeram Bresson ou Tarkovski). Porém, conhecemos minimamente algumas das suas opiniões através de afirmações que se podem encontrar dispersas na internet ou em livros de cinema. São pequenas frases ditas pelo génio de "A Laranja Mecânica" que revelam a ponta do véu do seu espírito irrequieto:

- "A filmmaker has almost the same freedom as a novelist has when he buys himself some paper"
- "I never learned anything at all in school and didn't read a book for pleasure until I was 19 years old."
- "The great nations have always acted like gangsters, and the small nations like prostitutes."
- "A film is - or should be - more like music than like fiction. It should be a progression of moods and feelings. The theme, what's behind the emotion, the meaning, all that comes later."
- "There are few things more fundamentally encouraging and stimulating than seeing someone else die."
- "Perhaps it sounds ridiculous, but the best thing that young filmmakers should do is to get hold of a camera and some film and make a movie of any kind at all."
- "If it can be written, or thought, it can be filmed. "
- "The screen is a magic medium. It has such power that it can retain interest as it conveys emotions and moods that no other art form can hope to tackle. "

sábado, 17 de maio de 2008

"Cahiers du Cinéma": O canto do cisne?


O Público noticia que a mais influente revista de cinema da Europa, a francesa Cahiers du Cinéma está em vias de fechar portas. A revista foi a bandeira da "Nouvelle Vague" francesa nos anos 60 e implementou a famosa "política de autores", defendendo um cinema independente e ousado, alternativo ao sistema de produção comercial. Nas suas páginas escreveram nomes cimeiros do cinema, como Truffaut, Godard, Malle, Rivette, entre outros. Agora, os "Cahiers" estão à venda. E o perigo tem a ver com o facto de poder ser comprada por um grupo económico que despreze os princípios editoriais da revista em favor da rentabilização económica (o que significaria uma viragem radical da sua linha editorial e uma ruptura com a identidade da revista). A revista tem actualmente 20 mil leitores mensais, 10 por cento dos quais no estrangeiro. O espírito dos "Cahiers du Cinéma" está a extinguir-se e vozes do cinema mundial já se manifestaram em favor da preservação da identidade da revista. A ser verdade que estejamos a assistir ao canto do cisne da revista que ajudou a fundar e a desenvolver um tipo de cinema experimental, significa que termina também uma era em que o espaço público para a cultura alternativa se vai afunilando cada vez mais. E esse espaço para pensar o cinema, discuti-lo livremente e reformulá-lo chamava-se "Cahiers du Cinéma".

O papel do crítico musical


Este é um país que liga muito pouco à crítica de arte. Os críticos que escrevem para a imprensa generalista ou especializada, sejam de música, cinema, artes plásticas, literatura, ou de teatro, têm a nobre função de divulgar e promover os objectos culturais que analisam. Mas para quem escrevem os críticos? A verdade é que, na esmagadora maioria dos casos, os críticos escrevem para o próprio umbigo, para uns quantos iniciados e para... os outros críticos. É um círculo vicioso que em nada beneficia o leitor médio de jornais ou revistas. O exercício da crítica deve conter tanto de informativo como de emissão de juízo de valor e, tendencialmente, elaborada numa linguagem o menos técnica e hermética possível.
Vem esta introdução a propósito do facto de, no dia 15 de Maio, terem passado 3 anos da morte daquele que considero ter sido um dos melhores críticos de música que este país já teve: Fernando Magalhães (na foto). Com formação em filosofia, a paixão pela música e pelo jornalismo falou mais alto. Durante anos escreveu para diversas publicações, mas foi no (então) semanário Blitz e no diário Público que a escrita de Fernando Magalhães se fez notar. Para além do grande domínio da língua portuguesa, o jornalista tinha uma vasta e diversificada cultura musical, que lhe permitia dissertar com a mesma desenvoltura sobre fado, krautrock, electrónica experimental, world-music ou jazz (foi a ler muitas das suas críticas que desenvolvi o gosto pelas mestiçagens estéticas). Depois, detinha um sentido de humor férreo e cáustico, sobretudo quando fazia reportagens de concertos ao vivo. Tanto revelava valores musicais emergentes como escrevia longas recensões sobre artistas consagrados como Frank Zappa, Residents, Dead Can Dance, Kepa Junkera ou (o seu muito amado) Peter Hammil. Muitas vezes se queixou que o Público não lhe dava rédeas soltas para escrever sobre aquilo que queria realmente escrever (dado que privilegiava as correntes musicais marginais e alternativas), facto que lhe proporcionava uma angústia crescente enquanto profissional. A crítica musical de Fernando Magalhães era cirúrgica, extremamente bem construída, inteligente, pragmática e pedagógica (premissa importante mas desprezada por muitos críticos). Do panorama da crítica musical nacional, só o João Lisboa se lhe compara em dimensão jornalística e cultura musical. Das novas gerações, o estilo jornalístico de Magalhães deixou marcas em críticos como João Bonifácio (Público).
3 anos depois do seu desaparecimento, vale a pena ainda ler ou reler muitos dos seus textos, artigos, críticas e entrevistas. Basta abrir este espaço dedicado à memória da escrita de Fernando Magalhães.


sexta-feira, 16 de maio de 2008

Kubrick em registo de paródia

Quem conhece a filmografia de Stanley Kubrick vai divertir-se a ver (com som) esta sequência em animação que brinca com algumas das melhores cenas dos seus filmes:

O mundo da blogosfera em debate


Para melhor visualização, carregar na imagem.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

A história do clichê cinematográfico


Mesmo quem não seja cinéfilo e apenas espectador regular de cinema sabe que os clichês são recorrentes nos filmes. Parece mesmo que, sem eles, os argumentistas não podiam viver (bem, nem todos). Por exemplo: quantas vezes não vimos já a típica cena de alguém que entra num carro porque vai a fugir de outro alguém e... o carro não pega? Ou a cena em que o assassino parece que já morreu baleado com 23 tiros mas volta a levantar-se para aterrorizar a vítima (uma vez mais)? Ou o personagem bom que quer matar o mau e fica sem balas nesse preciso momento? Como estes, há milhares de outros clichês que fizeram - e continuam a fazer - a história do cinema - para o bem e para o mal. O site que está em baixo é um manual impressionante de lugares-comuns e chavões no cinema, vistos e revistos, gastos e recorrentes. Clichês da história, clichês visuais, de interpretação, de realização, enfim, para todos os gostos. Alguém teve a paciência de os compilar por temas. Claramente um site para qualquer aspirante a argumentista de cinema saber evitar (ou reformular, quem sabe) os clichês da história.

O café dos artistas (e não só)


O que têm em comum Camus, Picasso, Apollinaire, Artaud, Sartre, Simone de Beauvoir e Tristan Tzara? Para além de todos serem grandes figuras da arte e da cultura, todos foram clientes assíduos do mais mítico e elegante café de Paris: Café de Flore, em Saint-Germain-des-Près. Francis Ford Coppola disse um dia que o seu sonho era viver neste bairro francês para assim poder tomar o pequeno-almoço todos os dias no Café de Flore. Foi neste café que, durante décadas, dezenas de pintores, intelectuais, escritores, estilistas, actores e outros artistas se encontravam num ambiente de tertúlia (na bela esplanada ou no interior requintado). Dizia-se que houve tempos em que o café tinha mais artistas em convívio do que garçons a servir à mesa.
Em Portugal extinguiram-se os últimos cafés com tradição, bom gosto, espaços de conversa e tertúlia, de convívio à volta de uma bebida e de um jornal. Fernando Pessoa, Almada Negreiros ou Luiz Pacheco viveram grande parte das suas vidas em cafés (Martinho da Arcada, por exemplo) e criaram muita das suas obras nesses cafés. Hoje já não existem cafés com carisma, personalidade, abertos à discussão das artes e da cultura. Por isso o Café de Flore é uma referência incontornável deste tipo de vivência e de modo de estar, não só de Paris, mas de toda a Europa. Aberto desde o final do século XIX, este café de culto continua a fascinar meio mundo, das artes à moda, do desporto ao cinema, da figura pública ao cidadão comum. A última vez que estive em Paris (há 5 anos) não tive oportunidade de por lá passar. Não falharei a visita da próxima vez.

Leonard Cohen em livro


O mais recente livro de poesia do músico Leonard Cohen, intitulado "The Book of Longing", vai ser editado em Portugal no próximo mês de Julho com o título "O Livro do Desejo", numa altura em que o cantor vai actuar ao vivo em Portugal no próximo dia 19 de Julho. O compositor Philip Glass já tinha composto músicas com base nos poemas de Cohen, no magnífico álbum intitulado, precisamente, "The Book of Longing" (2007). O seu primeiro livro, "Let Us Compare Mythologies", foi publicado em 1956. Com "The Spice Box on Earth", em 1961, Leonard Cohen torna-se internacionalmente reconhecido. Seguir-se-ão os livros "Flowers for Hitler" (1964) e "Beautiful Losers" (1966).
Em 1985 foi editado aquele que seria o primeiro livro de poemas de Leonard Cohen publicado no nosso país: "Filhos da Neve", na colecção Rei Lagarto da Assírio & Alvim, com tradução de Jorge Sousa Braga e Carlos Tê. A edição deste novo volume de letras e poemas do cantor de "Marianne" só vem acalentar, por isso, a carreira musical e literária do cantor canadiano.
Uma excelente notícia, portanto.

"A generala"

Melhor capa de todo o sempre?

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Discos que mudam uma vida - 15


Virgin Prunes - "...If I Die, I Die" (1982)

A importância do desenho


Fernando Lemos, pintor surrealista, artista gráfico, fotógrafo e poeta português emigrado no Brasil desde 1953, deu uma entrevista ao Jornal de Letras. A dado momento, faz esta observação: "O desenho está em tudo. A escrita é feita de palavras, as palavras e as letras de desenho. O desenho escreve, inventou as letras para se exprimir. Uma das grandes falhas na educação é não se obrigar as crianças a desenhar na escola, tal como se escreve. É a mesma coisa, sendo que o desenho é uma linguagem universal. Quando ouço alguém a dizer 'desculpe mas não sei desenhar', é como se dissesse, 'desculpe, mas sou analfabeto".
Descontando o tendencioso exagero da afirmação, convenhamos que o pensamento do artista faz muito sentido num sistema de educação que não valoriza a expressão individual, a criatividade e, em última análise, o sentido estético e a arte.

O dia em que fui a Cannes (ou quase)


Hoje tem início a 61ª edição do Festival de Cinema de Cannes. O mais competitivo, mediático e afamado festival de cinema do mundo. Existem os prestigiados festivais de Veneza, Berlim, Sundance, mas nenhum se compara, em importância e glamour, ao de Cannes. E não há realizador no mundo, novato ou veterano, que não gostasse de ter os seus filmes a concurso neste festival ou, claro, ganhar a Palma de Ouro. Claro que Cannes é, também um mundo inesgotável de negócio (que o diga Paulo Branco) e de comércio, mas isso faz parte da essência de qualquer festival. Claro que também há frivolidades andantes, figuras públicas e estrelas de pacotilha que se pavoneiam pela carpete vermelha. No entanto, o cerne de Cannes sempre foi e será o cinema, os filmes, os artistas. Isso é que fica para a posteridade.
Poucos serão os cinéfilos que não gostariam de poder assistir ao festival. Sentir o frémito e as emoções resultante do visionamento dos grandes filmes a concurso, partilhar os aplausos ou os apupos aos filmes, assistir às concorridas conferências de imprensa com realizadores e actores, sentir o ritmo frenético da exibição dos filmes em catadupa, as várias secções competitivas, etc.
Foi o que tentei fazer um dia, ir a Cannes - através de um concurso nacional. Foi em 1990 e o concurso, designado, "Sê um Crítico de Cinema e vai a Cannes!" (cito de memória) era dinamizado pelo Instituto Português da Juventude. A coisa funcionava de forma muito simples: qualquer jovem com menos de 25 anos podia participar; bastava ver um filme que na altura estivesse em cartaz e escrever uma crítica ao mesmo. Os autores das 20 melhores críticas nacionais eram seleccionados para irem a Lisboa verem outro filme, outra crítica e, a melhor considerada pelo júri, tinha como prémio ir ao festival de Cannes durante dois dias (ou três, já não me recordo) com todas as despesas pagas.
Fui seleccionado para os 20 participantes de Lisboa com a crítica ao filme "Presumível Inocente" (1990) de Alan J. Pakula (com Harrison Ford), um muito interessante thriller que marcou aquele ano de cinema. Lá fui a Lisboa para a competição final, sempre com Cannes em vista. Cheguei numa sexta-feira. Logo nessa noite, eu os restantes concorrentes decidimos assistir a uma sessão num sítio óbvio, a Cinemateca. Recordo-me que vimos um clássico mediano do Raoul Walsh. O grupo de concorrentes era constituído por jovens estudantes de todo o país, e a única coisa em comum entre todos era a paixão pelo cinema. No sábado seguinte, logo de manhã, eu os outros 19 participantes oriundos de todo o país, fomos visionar o filme para a crítica final que iria decidir quem iria a Cannes. Era um filme tão medíocre e comercial que já nem me lembro que objecto era aquele. As críticas foram entregues ao júri que deliberou no dia seguinte. Quem ficou em primeiro lugar foi um jovem de Lisboa que ganhara o privilégio de conhecer Cannes. Eu fiquei em 4º ou 5º lugar e tive direito a um prémio de consolação: um bilhete para assistir ao Estoril Open! Como não gosto de ténis, despachei logo o dito cujo para outra pessoa interessada. Ir ao Estoril Open em vez de ir a Cannes era consolação para quem quer que fosse?
Foi a única vez que estive perto de ir a Cannes, por intermédio de um concurso juvenil, imagine-se. Talvez um dia programe umas férias em Maio na Côte d'Azur para servir de pretexto para conhecer o festival.

A arte de cortar e colar imagens




Na linguagem cinematográfica a montagem é uma técnica absolutamente essencial para dar coerência estrutural ao filme. A interligação e relação entre planos num filme é determinante para o resultado estético do mesmo. Depois do avanço dado em 1915 pelo percursor David Griffith com a montagem paralela ("Nascimento de Uma Nação"), seriam os russos a desenvolver a montagem de forma definitiva. Serguei Eisenstein, Dziga Vertov, Kuleshov (é célebre o "efeito Kuleshov") ou Pudovkin foram cineastas que exploraram todas as dimensões expressivas e comunicacionais da montagem.
Nos últimos 20 anos há um nome incontornável que domina a arte da montagem: Thelma Shoonmaker, montadora quase exclusiva dos filmes de Martin Scorsese. Ganhou três Óscares pela Melhor Montagem nos filmes "Touro Enraivecido"(1981), "O Aviador" (2005) e "The Departed" (2007). A capacidade de Shoonmaker em perceber a duração certa de cada plano, o rigor métrico e o sentido ritmo da montagem são características da melhor montadora da actualidade. No site mais abaixo referenciado podemos ver uma lista (das muitas possíveis) das 10 melhores montagens para cinema. Vale a pena ver com atenção o fluir de cada sequência e perceber a forma como cada montador/a estruturou essas mesmas montagens. Não faltam os clássicos incontornáveis ("Couraçado Potemkine", "Touro Enraivecido"...), mas é surpreendente visionar o filme referente ao primeiro lugar da lista. Dez exemplos maiores da arte de cortar e colar as imagens do cinema: