sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Arte máxima de um minimalista


A história da música da segunda metade do Século XX não seria a mesma sem a figura central do compositor e intérprete norte-americano Philip Glass. Multipremiado a nível mundial pelas suas composições, o percurso deste músico tem sido trilhado com base num prolífico e diversificado trabalho de criação musical, desde a década de 60 até aos nossos dias. Com 70 anos de idade, a veia artística deste músico parece tornar-se cada vez mais ambiciosa e fecunda. Desde 1973 que o seu trabalho se espraia por abordagens tão distintas como a música para teatro, dança, cinema, óperas e orquestras. O talento de Glass advém de uma notável sensibilidade melódica, aliada a um fortíssimo sentido rítmico, a um gosto pelo desafio formal e a uma distinta capacidade para criar ambiências sonoras. A sua abertura estilística e o interesse na fusão entre a música erudita, a electrónica e as tradições musicais do mundo, valeram-lhe inúmeros louvores da crítica e do público (o seu trabalho com o indiano Ravi Shankar e o africano Foday Musa Suso são disso testemunha irrefutável). A sua visão artística partilhou-se também com cantores pop como Suzanne Veja, Paul Simon, Natalie Merchant, a artista e performer de vanguarda Laurie Anderson, o músico electrónico experimental Aphex Twin e o grupo de música contemporânea Kronos Quartet.

Fascinado pela cultura musical dos indianos e africanos, Glass integrou estas linguagens composicionais autóctones na sua música. Daí que, juntamente com Steve Reich, Terry Riley e La Monte Young - outros compositores americanos que marcaram a década de 60 e que partilhavam o fascínio pela música étnica -, Glass fez parte do movimento inicial da corrente minimal repetitiva, a qual despontou no final dos anos 60 como reacção crítica ao serialismo de Boulez e Messiaen. Esta corrente postulava a rejeição do esquematismo matemático da música devedora de Webern e Schoenberg. Glass e restantes compositores, dotados de uma mentalidade mais aberta e desafiadora, libertaram-se dos espartilhos da composição clássica, optando por inaugurar uma nova linguagem musical. Para tal, a música de Glass, Reich e Riley, assentava no primado da repetição de pequenos trechos melódicos ou rítmicos, com pequenas variações através de grandes períodos de tempo, e subtis modulações harmónicas, incutindo no ouvinte uma sensação de hipnose ritualista (a ideia de repetitividade rítmica destes compositores advém das culturas rituais de África e Índia). Contudo, Philip Glass sempre rejeitou a noção de que a sua música fosse minimalista, refutando, inclusive, a palavra minimalismo (“that word should be stamped out!”, disse sobre este assunto). Após divergência de opiniões com Steve Reich, Glass forma em 1968 o Philip Glass Ensemble, constituído por sintetizadores, vozes e instrumentos de sopro, destinado a executar ao vivo as suas peças. Este Ensemble mantém, ainda hoje, uma intensa actividade artística. Mesmo que Glass queira ver-se aliado de rótulos mais ou menos consensuais, a verdade é que a obra magna da história da música minimal é da sua autoria: a ópera-que-revolucionou-a-ópera “Einstein on the Beach” (1975), com direcção artística do famoso Robert Wilson. Obra de uma grande complexidade estética e formal (tem a duração de 5 horas), “Einstein on the Beach” é um assombro de pujança sonora, melódica e rítmica. Neste trabalho, a mestria de Glass no domínio dos mais ínfimos elementos musicais, a forma como manipula o tempo, as harmonias mutantes, o conceito de repetitividade, a riqueza expressiva e conceptual e a originalidade estética, conferem a esta obra um lugar maior nas composições musicais da pós-modernidade artística do século XX. Para além desta ópera marcante na sua carreira, Glass compôs ainda a obra “O Corvo Branco” estreada na Expo 98 de Portugal e escreveu ainda outras 20 nos últimos 25 anos.

Minimalista ou não, Philip Glass depressa enveredou por um caminho próprio. Das dezenas de discos, encomendas e peças originais, destacam-se “Music in Twelve Parts” (1975), “North Star” (1977), “Satyagraha” (1985), “Songs From Liquid Days” (1986), “Glassworks” (1993) e as composições para a genial trilogia “Qatsi” de documentários não narrativos do realizador Godfrey Reggio. De igual modo, a sua produção musical para o cinema (desde composições de bandas sonoras originais para filmes mudos até às grandes produções de Hollywood) tem sido extensa e rica: a magnífica música para o filme “Kundun” de Martin Scorsese, “As Horas” de Stepehn Daldry, “The Truman Show” de Peter Weir, musicou os filmes clássicos de Jean Cocteau (“La Belle et La Bête”, “Les Enfants Terribles” e “Orphée”) e Tod Browning (“Drácula”), e os premiados documentários do norte-americano Errol Morris. Ao longo da sua carreira, Philip Glass sempre se identificou com alguns dos criadores mais originais e irreverentes do panorama artístico do século XX: Jean Genet, Jean Cocteau, Mishima, Jean Epstein, Beckett, Brecht, ou Kafka.
Um artista completo, ainda que não consensual.

(Texto original para a revista "Hora TMG")

3 comentários:

Luís A. disse...

a minha partitura favorita de Glass, é a de Kundun. Simplesmente transcendental!

Jorge Silva disse...

O meu disco favorito do Glass é o “Songs From Liquid Days”. É, também, um dos meu discos da vida.

Unknown disse...

Gosto muito da banda sonora do "Kundun", assim como gosto muito do disco "Songs From The Liquid Days". Estamos sintonizados, portanto.