terça-feira, 11 de dezembro de 2007

O espectro da aceleração


Hoje, cada vez mais e em todos os domínios da actividade humana, vivemos numa época histórica marcada profundamente pela aceleração, pela perversidade da pressa e da velocidade. O ritmo de vida da sociedade globalizada instiga-nos um profundo instinto de aceleração. Aceleração para consumir, aceleração para trabalhar, aceleração para viver e até aceleração para morrer (ou ser enterrado). Esta velocidade vivencial é, muitas das vezes, instigada pela indústria da cultura, pela publicidade agressiva, pela comunicação social, pela sociedade do espectáculo mundano no qual vivemos. Sim, Debord tinha razão.

A evolução da sociedade que desembocou na actual era do digital e da tecnologia alteraram os nossos hábitos e lançaram-nos numa luta desenfreada contra os ponteiros do relógio. A par das muitas vantagens, a evolução tecnológica veio também introduzir novas formas de relacionamento com o tempo, dado que encurtou distâncias, aboliu barreiras espaciais e temporais, desenvolveu as redes de transportes e de comunicações, abriu-nos um mundo hiperacelerado onde tudo acontece a um ritmo frenético, sem paragens para meditações ou introspecções. À conta disso, os nossos hábitos sociais, profissionais e culturais mudaram radicalmente. Isso é bom ou mau? Perante tamanho frenesim de imagens, o olho humano já não tem a mesma capacidade de persistência retiniana. A informação-sinopse, resumida, rápida e fácil de consumir, é o último conceito da sociedade da informação. Haverá ordem no caos?

Tudo à nossa volta se rege pelo espectro da velocidade: comemos comida fast-food, jogamos jogos de computador que desafiam a nossa velocidade de processamento mental, compramos aquela marca de roupa quase instintivamente (após consumir subliminarmente anúncios publicitários de breves segundos (minuciosamente planificados e realizados para tal), vemos televisão em constante mutação zapping, pesquisamos na Wikipédia para não ter de ir à biblioteca da esquina, ouvimos música aleatória no carro enquanto vamos para o emprego porque não há tempo para ouvir em casa, vemos cinema “popcorn” de consumo imediato, lemos literatura “light”, efectuamos múltiplas tarefas simultaneamente para não perder muito tempo com cada uma delas isoladamente, lemos um manual que explica “Os Maias” em 30 páginas para não ter que ler a obra completa, etc.

Exige-se tudo o mais rápido possível e se possível com o mínimo de esforço. A exigência da exigência como critério de obtenção de qualidade e de formação cultural, esfumou-se do sistema de ensino. O tempo desocupado e de lazer reduzem-se cada vez mais, afunila-se, impedindo-nos de respirar e sentir a leveza da ausência de obrigações sociais, pessoais ou profissionais. Mas a celeridade é inimiga da fruição estética. Da profundidade. Da reflexão interior. Fruto destas mudanças radicais impulsionadas pele sociedade tecnológica, consumista e globalizada, no campo da cultura (onde a música, obviamente, se insere), poder-se-á perspectivá-la como uma cultura de aceleração, uma cultura que, para ser fruída, já não exige a necessidade de contemplação ou de compenetração. A efemeridade está na ordem do dia, a qual acarreta o estigma da superficialidade, da passividade e do embrutecimento. No seio deste panorama, como incutir a massa crítica, o “think for yourself”, a vontade de não embandeirar em boçalidades arcaicas?

Um dia, um amigo meu rebelou-se: levando à letra o "On The Road" de Jack Kerouac, optou por uma licença sem vencimento na Faculdade onde dava aulas e meteu-se num carro para fazer, sozinho, uma viagem costa a costa pela América – de Washington a Los Angeles. Um retiro espiritual num mosteiro budista no Tibete também estaria bem escolhido.

5 comentários:

Anónimo disse...

Olá Victor,
Antes de tudo agradeço-te o comentário que deixaste no meu blog. Bem, não estou de acordo com a tese que neste post defendes, que a velocidade que a sociedade tecnologica nos impõe é inimiga da fruição estética que exige alguma profundidade. Que profundidade procuramos nas caixas de detergente do Wharol? E não temos 15 minutos para fruir a Guernica no Museu? Esse é o tempo suficiente para fruir uma obra de arte, creio. De todo o modo, a tese que defendes iria de encontro a uma teoria como a de Clive Bell, que defende que a obra de arte é, acima de tudo, forma significante e essa marca qualquer obra a leva. Não me parece também que Debord tenha acertado muito bem ao apontar todos os defeitos da humanidade ao poder alucinatório do espectáculo. Desde sempre, com ou sem espectáculo, existiram poderes hipnotizantes, pelo que hoje em dia é muito fácil objectar teóricos idealistas como Debord ou Baudrillard. Parece-me claro que o progresso tecnológico com todas as suas implicações altera o nosso modo de olhar para o mundo e a nossa relação com o mundo. Novos problemas se colocam. Mas daí não podemos tirar ilacções morais e levantar uma teoria geral da suspeita, até porque, o espactáculo que Debord criticou, é precisamente o mesmo que o trouxe até nós, o que por si só nos indicia que Debord se enganou. Afinal, o espectáculo não é tão mau quanto ele pressupôs. I think! Que me dizes?
Abraço.
Ah, o teu blog é uma leitura diária para mim, nem que seja a estas horas da noite e ainda que tenha de me levantar cedo.
Rolando Almeida

RUTE disse...

Gostei particularmente deste post. Mas há uns dias que visito o teu espaço, Victor.

A foto é tua? Esta da velocidade alucinante das luzes noturnas? Boa foto.

Se quiseres visitar o meu espaço, deixo o link: http://publicarparapartilhar.blogspot.com/

Unknown disse...

Rute: não, a foto não é minha - a fotografia não é o meu "cup of tea". Já adicionei o teu blog (que gostei).
VA

Unknown disse...

Meu caro Rolando: o homem da filosofia és tu, logo terás outra preparação para interpretar as questões por mim suscitadas. Eu nºao me referia ao tipo de fruição estética dos eventuais 15 minutos a observar um determinado quadro. Para esse tipo de fruição haverá sempre tempo. Referia-me antes à fruição na acepção genérica: ao tempo diário que dispomos para fruir o que quer que seja: a natureza, a beleza de uma canção, uma conversa agradável e prolongada entre amigos, um filme que seja visto do princípio ao fim sem interrupção, a leitura de um jornal ou livro do nosso interesse, etc. Todas essas formas de fruição (e muitas outras, por mais banais que possam parecer) dão sentido à vida e tendem a afunilar-se à custa do escasso tempo que dispomos para nós próprios.
Parece-me que a teoria base do Debord e dos situacionistas mantém-se ainda de pé, mas admito que esteja algo datada e muito colada aos acontecimentos revolucionários da contra-cultura dos anos 60 em França.
Um abraço,
VA

RUTE disse...

Vou fazer o mesmo. Adicionar o teu Blog à minha lista na coluna lateral. Gosto das tuas reflexões.

Tu publicas a uma velocidade impressionante!!

Quanto a esta aceleração inimiga da fruição, eu pásso a vida a travar, forçando-me a ver tudo ao relantie para poder saborear. Falo sobre isso no post Q.I.E. de Junho.

Até breve.